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terça-feira, 13 de julho de 2010

alô alô, hors-série


Alguns momentos da sessão da assembleia municipal realizada a vinte e cinco de junho último não correram bem ao pessoal do ps. Daí que, numa tentativa de contenção de estragos, poucos dias depois (a vinte e nove de junho) o presidente da câmara municipal tenha apresentado um comunicado em conferência de imprensa (vide notícias de ourém, n.º 3782, 2.julho.2010, p. 9).

O comunicado começa com uma declaração solene, por conta de um «compromisso de responsabilidade que se exige». O segundo parágrafo é pungente, porquanto, mesmo com o trambelho a meia haste, percebe-se que a referência à «harmonia social do município» não é para levar a sério. O tom é mais do que fora de acerto e medida - roça o estilo histérico-apocalíptico - e parece fundado num lirismo à la disney que projecta uma imagem da comunidade local feita de gente mansa e lorpa - portanto levada e incapaz de raciocinar - entre a qual há uns maus sem cuidado a desarticular e a partir a ordem tão arrumadinha, bucólica e equilibrada que existe. Lancinante. Se se está ao nível dos combate e debate políticos e do agonismo democrático, justifica-se a denúncia da demagogia, da demagogia sob todas as formas, incluindo a demagogia que se anuncia e enuncia contra a demagogia. Até porque, ao invés do que possa pretender-se, a demagogia não se combate com prosa gongórica e declarações emproadas, com ressonância de bafio paternalista ou ranço autoritário.

O título do comunicado é «ic9, festas de ourém e auditoria» mas o comunicado é «festas de ourém, ic9 e auditoria».

Em relação às festas da cidade e do município, é apresentado um quadro que enxovalha quem o fez e divulgou e que desrespeita quem a ele é dirigido, os oureenses. Os itens não têm correspondência uns com os outros, (no que se consegue perceber) sequer estão alinhados na mesma ordem, há pelo menos um item omisso - o das receitas - em uma das colunas e, o disparate que coroa tanta trapalhada, o presidente da câmara municipal assina uma declaração que considera como despesa das festas da cidade e do município do ano passado uma actuação de Quim Barreiros que o próprio presidente da câmara municipal revelou publicamente saber que não aconteceu nas tais festas, porque, de facto, não aconteceu. Portanto o quadro apresentado não chega a ser um quadro à papo-seco, é um quadro feito à martelada. O que não é mau, é péssimo, além de patético e ridículo, mesmo que corresponda ao modo de o pessoal do ps na câmara municipal contribuir para clarificação e a harmonia social de ourém. E tudo isto, exposto com esplendor numa conferência de imprensa, porque a uma pergunta simples de alguém da bancada do psd na assembleia municipal - quanto foi gasto este ano com as festas da cidade e do município? - o presidente da câmara municipal, em vez de responder, preferiu enviesar e afirmar que as cantigas e o foguetório deste ano custaram menos vinte e um mil euros do que no ano anterior. E catrapum. Bem feitas as contas - coitada da harmonia social -, a diferença há-de cifrar-se noutro valor qualquer, desconhece-se qual, porque o apuramento realizado às três pancadas, além das receitas, também não considerou o que foi gasto com o concerto dos rádio macau no ano passado. Dispensando considerações sobre seriedade e rigor, a roldana de um guindaste não enrola melhor.

Sobre o ic9 não há muito a dizer. A falta de cultura e de prática de planeamento no plano municipal tende a produzir os resultados que se sabe. A falta de vigilância cívica também. Quanto à coisa em concreto, como é óbvio, o pessoal do ps na câmara municipal não tem responsabilidade maior. Exerce o mandato em situação de maioria há oito meses, herdou o dossier e, embora com incidência local, o processo do ic9 é conduzido por instâncias estranhas ao município e já há algum tempo que está em fase avançada, sem margem de manobra para a introdução de alterações significativas. Ou seja, o que estava feito continuou a estar feito, bem ou mal.

No que concerne ao relatório da auditoria realizada pela deloitte, sa também não há muito a dizer. Corresponde a um acto falhado da gestão socialista e tão mais falhado quão as expectativas foram insufladas sofregamente pela propaganda e quão necessário era uma auditoria que, por via externa e processo autónomo e pelo dispêndio implicado, produzisse informação de referência, inequívoca e incontroversa. Chegados a este ponto, cada vez que o pessoal do ps na câmara municipal fala sobre o assunto amplifica o efeito do acto falhado, acrescentando contradições ao enredo ou explicações ao que devia ser evidente. Pelo menos o facto de o prazo contratado para a realização da auditoria não ter sido cumprido tornou-a inútil. Sabe-se que o relatório de auditoria não informou o relatório de gestão municipal referente ao exercício de 2009, não informou o orçamento municipal referente ao exercício do ano corrente, não informou a alteração do quadro orgânico e funcional do município, sequer informou ou orientou qualquer processo de saneamento financeiro e, pelo que é público, o resultado da análise swot no que não é inédito é chover no molhado - por exemplo, repete o que tem sido inscrito ano após ano nos orçamentos municipais - e no que é inédito - o que é que raio é «inveja estrutural» ou «etnocentrismo» neste município harmonioso? - carece de explicação e justificação, explicação e justificação circunstanciadas, não um derrame de lérias (vide notícias de ourém, n.º 3780, 18.junho.2010, p. 10). Perante isto, o pessoal do ps na câmara municipal faz muito bem em disponibilizar o relatório de auditoria só depois de fazer a declaração política final sobre o assunto. Mas talvez fizesse melhor se continuasse ad æternum a fazer declarações políticas antefinais, tipo novela, esquivando-se ao incómodo do contraditório público informado. Ou, melhor ainda, mesmo após a declaração política derradeira, se mantivesse o relatório da auditoria sob embargo, bem escondidinho, e o classificasse como segredo de paróquia. Em prol da harmonia social. E da vergonha. Porque, pelo que se percebe da moda, o tal compromisso de responsabilidade que se exige rima mal com transparência. E rima pior com discussão pública.

domingo, 11 de julho de 2010

alô alô, ii (adenda)


(e depois)
Após a intervenção que fiz na última sessão da assembleia municipal, Sérgio Ribeiro aproveitou a oportunidade para afirmar que entendia que, por corresponderem a actos de gestão, as operações do esquema a que me referi não careciam de ratificação da assembleia municipal. Nesta admissão aquele membro do órgão deliberativo do município foi acompanhado pelo presidente da câmara municipal, que admitiu que talvez não fosse necessário apresentar aqueles assuntos à assembleia municipal. Antes, porém, o presidente da câmara municipal afirmou serem desadequadas as palavras esquema e enredo para descrever e caracterizar o caso. Recordou que o esquema estava amparado por palavras da directora-geral da direcção-geral das autarquias locais e de alguém, quadro qualificado, do tribunal de contas, assim como por um parecer de uma sociedade de advogados a que o município costuma recorrer. Informou ainda que conhecia muito bem o relatório de auditoria do tribunal de contas sobre o endividamento do município de lisboa e que o cederia a quem quisesse. Por fim o presidente da câmara municipal disse que, através dos acordos de pagamento celebrados, não havia transformação de dívida de prazo curto em dívida de prazo médio, porque a dívida do município aos credores em causa era já de prazo médio, e sustentou que não havia transferência de dívida da srufátima para o município, porque o município devia à srufátima que, por causa disso, por sua vez, devia a duas empresas. Nesta sequência, o presidente da câmara municipal fez outra afirmação da qual não recordo o teor, embora suspeite que estivesse relacionada com o tipo de acordos de pagamento celebrados e a diferença deles relativamente aos que foram tentados pelo município de lisboa e censurados pelo tribunal de contas.
(e depois de depois)
À luz do que foi exposto no post anterior, nesta oportunidade seria redundante tecer considerações sobre estas duas intervenções breves, designadamente a do presidente da câmara municipal. Embora a latitude retórica da defesa do esquema feita por ele justifique alguns reparos, o mais relevante não é o que o presidente da câmara municipal disse, é o que ele não disse.
(mais perguntas que não foram feitas, mais esclarecimentos que não foram prestados)
Percebe-se pelo enredo que havia dúvidas em relação ao esquema. Foram feitas consultas, foi pedido um parecer jurídico. Quando?, isto é, em que momento do processo?, isso não se sabe. Mas parece que pelo menos o parecer jurídico foi solicitado - ou chegou - depois das votações das diversas operações pela câmara municipal. O que é um bocadinho o mesmo que meter a carroça diante das bestas. Para além disto, tendo o esquema os contornos que tem, como é que os serviços do município se pronunciaram sobre o assunto? Ou não houve consulta a tais serviços? Se houve consulta, não se vislumbra em algum momento do enredo a invocação de qualquer informação prestada pelos serviços do município e tal informação foi omitida à assembleia municipal. Se não houve consulta, é de bradar, dado haver consultas a pessoas e entidades estranhas ao município para orientar e conformar o processo com a legislação aplicável e dado serem públicas as loas tecidas pelo presidente da câmara municipal em relação ao pessoal do quadro do município. Afinal como é que é? Aliás, já agora, se havia dúvidas e propósito de conformar as operações que constituem o esquema com a lei, por qual motivo, como dispositivo cautelar - adequado e disponível -, não foi solicitado o visto prévio ao tribunal de contas para as tais operações? Este é mais um rol de interrogações que ninguém fez e de esclarecimentos que ninguém prestou. Pelo que, para dissipar tanta opacidade, o melhor talvez seja colocar o caso à consideração do tribunal de contas e da tutela administrativa, para averiguação e inquérito, e pronto. Como tudo está bem, tudo há-de continuar como está.

alô alô, ii

capítulo dois, esquema e enredo à moda antiga.

(quem for parco de paciência ou, sem prejuízo grande, quiser dispensar minudências sobre o esquema e o enredo pode passar directamente para aqui)
Da pauta de trabalhos da sessão da assembleia municipal de vinte e cinco de junho fazia parte um conjunto de pontos - do 2.09 ao 2.15 - que consubstancia um esquema assente em operações de três tipos.
(operação a, os pedidos de ratificação feitos pela câmara municipal à assembleia municipal)
Nas sessões da câmara municipal de dezoito de maio e de um de junho últimos, foram apreciadas várias propostas subscritas pela vereadora Lucília Vieira com incidência sobre o plano das finanças municipais. Tais propostas, todas, foram aprovadas por unanimidade e remetidas à assembleia municipal com apelo de ratificação (vide acta da câmara municipal de 18-05-2010, pp. 37-41 e acta da câmara municipal de 01-06-2010, pp. 5-8).
(operação b, a transformação de dívida da srufátima a duas empresas em dívida do município a essas mesmas empresas)
Uma das propostas referidas consistia na transformação de dívida da srufátima a duas empresas em dívida do município a essas mesmas empresas. O enredo desta operação é enrolado mas percebe-se sem dificuldade. No ano passado, o município e a srufátima subscreveram um contrato-programa no âmbito do qual o município assumiu o compromisso de transferir determinado montante para a srufátima e a srufátima aceitou como incumbência a requalificação do troço da estrada nacional 360 compreendido no perímetro urbano de fátima (vide acta da câmara municipal de 13-10-2008, pp. 28 e 70-74 e acta da câmara municipal de 16-03-2009, pp. 19-20). Para a concretização de tal incumbência, a srufátima firmou contratos de empreitada com duas empresas. As obras foram realizadas, houve festa nas vésperas das eleições autárquicas do outono passado e, terminados os trabalhos, como é da praxe e da contabilidade, as empresas envolvidas nas empreitadas emitiram facturas em nome da srufátima. Após isto, (a seis de maio do ano corrente) a srufátima solicitou ao município que procedesse à transferência do montante contratado e devido para poder liquidar a dívida contraída junto daquelas duas empresas, (a doze do mesmo mês) a câmara municipal assumiu não ter condições financeiras para cumprir tal compromisso e, como alternativa, propôs proceder à transferência do montante devido acrescido de juros em tranches mensais ao longo de cinco anos, com o primeiro ano de carência de capital, e (a dezoito ainda do mesmo mês) a srufátima, afirmando a proposta da câmara municipal como não aceitável, sugeriu descartar-se da dívida, transferindo-a para o município, de modo a que este passasse a dever às empresas mencionadas, o que foi prontamente acolhido pela vereadora Lucília Vieira, vertido em proposta, aprovado pela câmara municipal e submetido à assembleia municipal com apelo de ratificação (vide acta da câmara municipal de 18-05-2010, pp. 40-41).
(operação c, os acordos de pagamento de dívida vencida com credores do município e da srufátima)
Paralelamente à operação descrita e em consequência dela, a câmara municipal realizou outra operação, acertando os termos de um conjunto de acordos de pagamento de dívida vencida com credores que o solicitaram - entre os quais os referentes à dívida da srufátima. Em termos genéricos, os acordos referidos previam o pagamento em prestações mensais durante um período de cinco anos, com o primeiro ano de carência de capital, do valor da dívida vencida, acrescido de taxa de juro indexada à euribor mais 1,75 ou 2,5 pontos percentuais consoante os casos, factor esse inferior ao que seria devido por pagamento de juros de mora. Em sessões consecutivas, as já referidas de dezoito de maio e um de junho, a câmara municipal apreciou as seis propostas de acordo de pagamento subscritas pela vereadora Lucília Vieira, tendo sido aprovadas por unanimidade e submetidas à assembleia municipal com apelo de ratificação (vide acta da câmara municipal de 18-05-2010, pp. 37-40 e acta da câmara municipal de 01-06-2010, pp. 5-8). (1)
(continuando)
Na sessão da assembleia municipal em que esta matéria foi objecto de apreciação e votação, Sérgio Ribeiro, eleito pela cdu, foi o único membro daquele órgão que teceu alguns comentários. Afirmou não estar contra o esquema e compreender o objectivo dele, não obstante considerou não sentir-se confortável com aquele tipo de esquemas - na verdade chamou-lhe engenharias financeiras -, pelo que iria abster-se. Suscitou apenas uma questão - porquê os acordos de pagamento com aqueles credores e não outros? -, relacionada com a equidade de tratamento que o município deve ter em relação às diversas empresas a que é devedor e aludiu ao facto de os acordos acolherem taxas de juros diferenciadas, embora abaixo da taxa de juro legal por mora. O presidente da câmara municipal explicou que os acordos eram firmados com aqueles credores porque tinham sido os que o haviam solicitado, não havendo objecção da câmara municipal a que acordos semelhantes venham ser feitos com outros credores do município, caso o solicitem também. O presidente da câmara municipal referiu ainda que havia consultado a directora-geral da direcção geral das autarquias locais assim como alguém, com perfil técnico e credenciado, do tribunal de contas e que de ambas partes recebeu a garantia de que o esquema obedecia aos trâmites que regulam este tipo de coisas. O presidente da câmara municipal referiu também que havia solicitado um parecer a uma sociedade de advogados a que o município costuma recorrer e que tal parecer também avalizava juridicamente o esquema. Após estas duas intervenções breves, os pontos foram votados a granel, aprovados por maioria larguíssima, com uma abstenção apenas. Sem controvérsia ou reparo maior.
(continuando a continuar)
Foram a complacência e a cumplicidade da assembleia municipal em relação ao esquema e ao enredo descritos - e a outros factos relacionados e ainda não referidos -, complacência e cumplicidade nomeadamente das oposições - de que se espera e a que se exige vigilância política dos actos do órgão executivo do município -, que me motivaram a usar a palavra durante o ponto dedicado a intervenções do público com o propósito de apresentar um conjunto de perplexidades e interrogações que, vá lá saber-se porquê, não testemunhei durante a apreciação - discussão não houve - da matéria em causa, designadamente no que concerne às condições e incidências do esquema e ao modo como tramitou.
(intermezzo para enunciar pressuposto)
A minha decisão de usar a palavra na sessão da assembleia municipal assentou no pressuposto de existir estado de direito em portugal e daí decorrerem consequências óbvias para o modo de funcionamento e tramitação dos órgãos do município. Concretizando, os actos e as decisões dos autarcas devem conformar-se com o enunciado das regras que se lhes aplica. Isto é um princípio básico e elementar do ordenamento jurídico português e que regula o complexo administrativo do qual as autarquias locais fazem parte. Tal princípio começa a ser expresso no n.º 2 do artigo 266.º da constituição da república portuguesa, que estabelece que “os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé”, o que é reiterado e detalhado nos enunciados do artigo 3.º até ao artigo 6.º-a do código do procedimento administrativo, em que, por exemplo, no n.º 1 do artigo 3.º do código referido é assente que “os órgãos da administração pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes forem conferidos”, pelo que não surpreende que tenha sido posto na alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º do estatuto dos eleitos locais que é dever dos autarcas “observar escrupulosamente as normas legais e regulamentares aplicáveis aos actos por si praticados ou pelos órgãos a que pertencem”.
(lasciate ogni speranza, voi ch’entrate)
O que eu disse de mais relevante na última sessão da assembleia municipal foi focado nas três operações que constituem o esquema descrito. Adiante surge uma síntese, por aproximação e não ipsis verbis, da intervenção que fiz, com explicitação dos fundamentos subjacentes às perplexidades e interrogações que manifestei então.
(sobre a operação a, os pedidos de ratificação feitos pela câmara municipal à assembleia municipal)
Segundo o artigo 82.º da lei que estabelece as competências e o regime jurídico de funcionamento dos órgãos autárquicos, “os órgãos das autarquias locais só podem deliberar no âmbito da sua competência”. Ou seja, em relação ao caso em apreço, a assembleia municipal só pode votar matérias para as quais esteja habilitada legalmente. Ora, considerando o catálogo de competências estabelecido para o órgão deliberativo do município (vide artigo 53.º da lei referida imediatamente antes), constata-se que a assembleia municipal não tem competência para ratificar qualquer um dos sete actos para os quais a câmara municipal solicitou ratificação. O que se compreende facilmente, atendendo a que, sem prejuízo das considerações feitas adiante sobre a conformação desses actos com a lei, os actos referidos correspondem a actos típicos de gestão corrente, relacionados com o pagamento a credores ou a transferência de verbas devidas ao abrigo de um contrato-programa celebrado pelo município. Pelo que não faz sentido o pedido de ratificação formulado pela câmara municipal para actos que estão compreendidos no plano de competência estrita desse órgão. Menos sentido faz que, ao contrário das restantes propostas que costuma remeter à assembleia municipal - com explicitação dos termo legais que as referenciam (vide, por exemplo, acta da câmara municipal de 18-05-2010, p. 8 ou acta da câmara municipal de 01-06-2010, pp. 26-27) -, a câmara municipal remeta àquele órgão propostas ou solicitações assentes em referência jurídica tão abstrusa quão vaga, “atendendo aos termos regulamentares e procedimentos exigíveis” (vide acta da câmara municipal de 18-05-2010, pp. 38, 39, 40 e 41 e acta da câmara municipal de 01-06-2010, pp. 6, 7 e 8). Que «termos regulamentares» e «procedimentos exigíveis» são esses?, não se sabe. Hão-de existir seguramente em algum cérebro, porém sucede que, no caso, tal cérebro - de quem quer que seja - não constitui fonte de direito suficiente e tão pouco é arquivo equiparado ao diário da república. O que significa que, além de não terem feito sentido os pedidos de ratificação formulados pela câmara municipal, também não fez sentido a inscrição de tais pedidos na ordem de trabalhos da sessão da assembleia municipal promovida pela mesa deste órgão, até porque é competência dessa mesma mesa averiguar a conformidade das propostas ou solicitações da câmara municipal com a legislação aplicável antes de as admitir na pauta de trabalhos do órgão que orienta (vide a alínea d) do n.º 1 do artigo 46-a da lei que estabelece as competências e o regime jurídico de funcionamento dos órgãos autárquicos), dever igual ao que impende sobre esse mesmo órgão - portanto sobre todos os membros dele - antes do momento da votação (vide o n.º 1 do artigo 33.º do código do processo administrativo).
(interrogações que nenhum membro da assembleia municipal fez, esclarecimentos que nenhum membro da câmara municipal prestou, sobre o enredo subjacente à operação b)
Houve demasiadas perguntas não feitas, demasiadas explicações e informações não dadas, enfim demasiadas omissões e demasiados silêncios relacionados com a manobra que visou transformar a dívida da srufátima a duas empresas em dívida do município a essas mesmas empresas, mistérios que importa expor e esclarecer. A propósito, segue um elenco de perguntas.
. Ao contrário do que sucedeu com os relatórios de gestão da ambiourém e da verourém (vide acta da câmara municipal de 19-04-2010, pp. 12-13 e acta da assembleia municipal de 30-04-2010, pp. 63-64), porquê até à data da última sessão da assembleia municipal o relatório de gestão da srufátima referente ao exercício do ano passado ainda não foi apresentado aos órgãos do município? O que consta em tal relatório? O que consta no relatório e no parecer do fiscal único sobre aquele relatório?
. Estando impedido de o fazer pela alínea a) do n.º 1 do artigo 44.º do código do procedimento administrativo e pelo n.º 6 do artigo 90.º da lei que estabelece o quadro de competências e o regime jurídico de funcionamento dos órgãos autárquicos - e correspondendo tal impedimento a um princípio básico e elementar que incide sobre actos de qualquer autarca -, porquê Nazareno do Carmo, enquanto vereador, esteve presente durante a apreciação e participou na votação de matérias em que a srufátima, cujo conselho de administração preside, é também parte implicada e interessada?
. Presumindo que o acto de transformação da dívida da srufátima a duas empresas em dívida do município a essas mesmas empresas carecia de ratificação da assembleia municipal, quem, antes de tal ratificação ter acontecido, portanto em abuso, informou as empresas referidas de que, substituindo-se à srufátima, o município se havia assumido como devedor a elas?
. Ainda sob a presunção anterior, porquê, em flagrante deslealdade entre órgãos do município, a câmara municipal votou acordos de pagamentos com duas empresas que só deveriam ser celebrados após ratificação de outro acto condicionador desse mesmos acordos pela assembleia municipal?
(sobre a operação b, a transformação de dívida da srufátima a duas empresas em dívida do município a essas mesmas empresas)
Embora as respostas às perguntas anteriores sejam importantes para esclarecer o enredo e não estejam disponíveis publicamente, tal não significa que a operação em causa não possa ser apreciada. Comece-se por verificar que o caso é bizarro. Na prática, o município constituiu-se como causa dupla do problema, tanto por não cumprir aquilo a que se obrigou voluntariamente no quadro de um contrato-programa que celebrou com a srufátima quanto por, precisamente por não cumprir o que devia, ter patrocinado uma solução para o imbróglio que causou que confirma clara e exemplarmente o axioma «é pior a emenda do que o soneto». Sem considerações que podem e devem ser feitas mas que exigem excursões demoradas pelos meandros do regime jurídico que regula as finanças e a contabilidade das autarquias locais, optando por uma exposição económica, é possível perceber o quão canhestra é esta parte do esquema. O município e a srufátima celebraram um contrato-programa com o objectivo de promover a requalificação do troço da estrada nacional 360 compreendido no perímetro urbano de fátima. A srufátima cumpriu o que assumiu no âmbito desse contrato-programa e o município cumpriu apenas parte, faltando a transferência para aquela empresa municipal de 1.265.323,89€, valor correspondente às três tranches finais do montante total acordado, referentes a novembro de 2009 e fevereiro e maio de 2010 (vide acta da câmara municipal de 16-03-2009, p. 20). Ora, havendo já efeitos e consequências do contrato-programa não anuláveis, não há como por ora o município furtar-se à responsabilidade que tem em relação à srufátima, do mesmo modo que a srufátima não tem como furtar-se à responsabilidade que tem em relação às empresas de que é devedora também por causa do contrato-programa referido. Em termos mais explícitos, se o contrato-programa entre o município e a srufátima decorre de uma imposição legal, as obrigações, em parte ou no todo, que resultam de tal contrato-programa não podem ser interrompidas ou suspensas, porque, como resulta evidente e é insofismável, isso seria o mesmo que tornar irrelevantes os termos do contrato-programa que a lei impõe (vide n.º 1 e n.º 2 do artigo 23.º do regime jurídico do sector empresarial local). A isto acresce que os resultados anuais das empresas municipais devem ser equilibrados e, se não o forem - o que, pelo que é patente, sucedeu com o exercício da srufátima de 2009 -, os municípios, no ano seguinte - portanto, no caso, em 2010 -, são obrigados a proceder a uma transferência financeira para tais empresas que cubra o resultado negativo anterior delas, obrigação que implica prever e prover no orçamento municipal o montante necessário para o efeito (vide n.º 1, n.º 2 e n.º 3 do artigo 31.º do regime referido imediatamente antes). Em face disto, é mais do que óbvio que o município está impedido de assumir directamente a dívida que a srufátima tem em relação às empresas que contratou para realizarem as empreitadas, porquanto, sem outras considerações que podiam e deviam ser feitas em relação ao caso - nomeadamente no que concerne à tramitação contabilística -, a operação gizada corresponde à esquiva do município a uma obrigação que pende sobre ele. Reitere-se, por disposição compulsória, o município tem de transferir para a srufátima o que voluntariamente e conforme contrato ainda não fez. Pelo que, a esta luz, surge absurda e abstrusa também a proposta apresentada antes pela câmara municipal à srufátima, no sentido de o município transferir para esta empresa municipal o montante devido, em fracções mensais, durante um período de cinco anos, com o primeiro ano de carência de capital, por, através de tal contorcionismo, também fazer-se tabula rasa dos preceitos que estabelecem e regulam as relações entre os municípios e as empresas municipais, assim como das regras relativas à consolidação financeira dessas mesmas empresas.
(sobre a operação c, os acordos de pagamento de dívida vencida com credores do município e da srufátima)
Quanto aos acordos de pagamento de dívida vencida com credores do município e da srufátima, convém notar que tais acordos não são iguais aos que foram tentados pelo município de lisboa e que foram declarados nulos e censurados pelo tribunal de contas (vide relatório de auditoria n.º 8/2010 da segunda secção do tribunal de contas, pp. 33-38). Segundo o que foi exposto pelo presidente da câmara municipal na sessão da assembleia municipal, embora o propósito seja semelhante - permitir que as empresas credoras do município e da srufátima possam conseguir financiamento bancário apresentado tais acordos como garantia -, o município não autoriza a cedência de créditos a terceiros, sendo contornado assim, em termos formais, o impedimento legal existente (vide n.º 12 do artigo 38.º da lei das finanças locais). Todavia esta reparação formal não é suficiente para conformar a operação com a lei. Como é sabido, o limite legal de endividamento de prazos médio e longo do município, mais do que esgotado, foi ultrapassado (vide relatório de gestão do município referente ao exercício de 2009, p. 183). Como em termos substantivos os acordos de pagamento configuram um diferimento e um fraccionamento da amortização de dívida vencida além de um ano, na prática tais acordos constituem-se como um expediente de reprogramação de dívida, transformando dívida de prazo curto em dívida de prazo médio. Ora, como referido, o limite legal de endividamento de prazos médio e longo está esgotado, o que significa que os acordos de pagamento constituem uma violação de um dos parâmetros de endividamento municipal (vide n.º 2 e n.º 4 do artigo 39.º da lei das finanças locais, assim como a doutrina expressa sucessivamente tanto em acórdãos e sentenças quanto em relatórios de auditoria do tribunal de contas sobre o endividamento municipal). O caso torna-se flagrantemente desconforme o regime das finanças locais quando apreciado por outro prisma. Segundo o n.º 1 do artigo 40.º da lei das finanças locais e do n.º 1 do artigo 3.º do diploma que densifica as regras referentes aos saneamento e reequilíbrio financeiros dos municípios, “os municípios que se encontrem em situação de desequilíbrio financeiro conjuntural devem contrair empréstimos para saneamento financeiro, tendo em vista a reprogramação da dívida e a consolidação de passivos financeiros, desde que o resultado da operação não aumente o respectivo endividamento líquido”. Sublinhe-se «devem contrair empréstimos» e «em vista a reprogramação da dívida». Como é que se sabe se este dever se aplica actualmente ao município? É fácil, basta considerar dois factos. Facto um, clarifica a alínea d) do n.º 4 do artigo 3.º do diploma referido imediatamente antes que o prazo médio de pagamento a fornecedores superior a seis meses é uma das situações que constitui fundamento da necessidade de recurso a empréstimo para saneamento financeiro. Facto dois, no final de dezembro do ano passado, o prazo médio de pagamento a credores do município de ourém era de 259 dias, ou seja, mais próximo dos nove do que dos oito meses, portanto além do limite estipulado por lei. Por outras palavras, segundo as regras que regulam as finanças locais, o município encontra-se, pelo menos, numa situação de desequilíbrio financeiro conjuntural - é provável que, pelos critérios legais, não esteja longe do desequilíbrio financeiro estrutural (vide n.º 3 do artigo 41.º da lei das finanças locais e n.º 1 do artigo 8.º do decreto-lei 38/2008, de 7 de março) - pelo que a câmara municipal deve realizar um estudo e apresentar um plano de saneamento financeiro do município, que passa obrigatoriamente pela contratação de um empréstimo que proporcione a reprogramação de dívida e a consolidação de passivos financeiros, empréstimo que, justamente pela situação em que é contraído e pelo objectivo que serve, tem um acolhimento específico (vide artigo 4.º e n.º 3 do artigo 3.º do diploma referido imediatamente antes).
(em suma)
No caso em apreço, fazendo a câmara municipal o que devia e continua a dever fazer por lei, o município liquidaria as dívidas que tem, transferiria o montante que está obrigado a transferir para a srufátima, reprogramaria a dívida, cumpriria as regras de endividamento municipal e de consolidação financeira das empresas municipais e, sem esquema e enredo esconsos, o pessoal da câmara municipal demonstraria estar implicado, implicado de facto, num processo de saneamento financeiro do município, sem andar para aí entretido em manobras equivalentes à tentativa de inventar a roda, a pólvora ou o parafuso, tudo coisas inventadas já há muito tempo e, por conseguinte, disponíveis e sem necessidade de serem inventadas novamente.
(coda)
Não se resolve o problema das finanças municipais - o endividamento e a falta de liquidez - recorrendo a esquemas e enredos do tipo daqueles que o criaram. Não é necessário ser Einstein para perceber isto. Daí esta perguntinha singela: corridos oito - soletrando, o-i-t-o - meses do mandato autárquico actual, quando é que na câmara municipal deixam de usar a podoa? É que não se percebe que utilidade ou vantagem tenha o raio desse instrumento no processo de saneamento financeiro do município. Aliás, não se percebia antes, quando da câmara municipal promanava o cheiro a laranjas, e continua a não perceber-se agora, quando da câmara municipal exala o perfume a rosas. Isto se não me falha o olfacto.
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  • (1) No âmbito das dívidas do município, foi acordado entre as partes que o município irá pagar durante cinco anos, com o primeiro ano como período de carência de capital, em prestações mensais e que: a) a desarfarte, lda. irá receber 86.298,12€, valor este acrescido de juros calculados com base na euribor a três meses mais 1,75 pp, com a primeira prestação a vencer em maio de 2011; b) a antónio emílio lopes & filhos, lda. irá receber 284.874,47€, valor este acrescido de juros calculados com base na euribor a um mês mais 2,5 pp, com a primeira prestação a vencer em maio de 2011; c) a jjr & filhos, sa irá receber 288.141,92€, valor este acrescido de juros calculados com base na euribor a três meses mais 1,75 pp, com a primeira prestação a vencer em maio de 2011; e d) a lena agregados, sa irá receber 205.977,30€, valor este acrescido de juros calculados com base na euribor a três meses mais 1,75 pp, com a primeira prestação a vencer em junho de 2011. No âmbito das dívidas da srufátima transferidas para o município, foi acordado entre as partes que o município irá pagar nas mesmas condições referidas e que: e) a desarfarte, lda. irá receber 730.588,61€, valor este acrescido de juros calculados com base na euribor a três meses mais 1,75 pp, com a primeira prestação a vencer em junho de 2011; e f) a matos & neves, lda. irá receber 222.658,28€, valor este acrescido de juros calculados com base na euribor a um mês mais 2,5 pp, com a primeira prestação a vencer em junho de 2011.
  • quarta-feira, 7 de julho de 2010

    alô alô, i

    capítulo um, a obra além do homem.

    Sérgio Ribeiro, membro da assembleia municipal eleito pela cdu, propôs um voto de pesar pela morte de José Saramago - voto que veio a ser aprovado por unanimidade -, tendo baseado a proposta numa referência genérica à obra literária dele e a dois factos que marcaram o seu encontro com a realidade oureense: foi um dos fundadores e sócios da livraria e editora som da tinta e, após ter-lhe sido atribuído o prémio nobel da literatura, deslocou-se também a chão de cá para receber o reconhecimento local por ter merecido tal galardão. Ora na circunstância pareceu-me que talvez fizesse sentido destacar não apenas o encontro do homem com ourém mas também o encontro da obra dele com ourém. A propósito, aludi ao facto de um dos romances de José Saramago mais celebrados pela crítica, o ano da morte de Ricardo Reis (lisboa, editorial caminho, 1984), ao longo da parte maior de um capítulo, conter a descrição de uma viagem, ida e volta, entre lisboa e fátima, por ocasião de um treze de maio, o de mil novecentos e trinta e seis. O relato não é histórico e não é canónico, mas não deixa de ser verosímil, atendendo à época e ao carácter da personagem, Ricardo Reis, que fez a viagem. E fiz tal alusão por entender que a passagem referida constitui um recurso que pode ser aproveitado dos modos mais diversos para a promoção e a valorização da condição oureense, à semelhança do que, a escala diferente e por motivo mais imediato, o município de mafra faz a propósito de outro dos romances maiores de José Saramago, memorial do convento (lisboa, editorial caminho, 1982). Depois do que referi, alguém, creio que o vereador José Manuel Alho, aludiu à existência de uma referência ao monumento natural das pegadas de dinossauros da serra de aire num dos volumes de cadernos de lanzarote - conheço apenas uma nota pequena, de diário, referente a vinte de dois de outubro de mil novecentos e noventa e cinco, incluída no volume iii (lisboa, editorial caminho, 1996), não sei se há outra menção - e Sérgio Ribeiro referiu também as páginas dedicadas a ourém em outro livro do autor, viagem a portugal (lisboa, círculo dos leitores, 1981), um guia - apesar de concebido há aproximadamente trinta anos - ainda útil para quem quiser descobrir e espantar-se com a paisagem e as coisas feitas e vividas por aí, o país.

    alô alô, teaser

    Circulam por aí uns zunzuns a propósito de uma intervenção que fiz na sessão da assembleia municipal realizada a vinte e cinco de junho. Numa espécie de cobrança cívica, algumas pessoas, ou por curiosidade, outras, interpelaram-me sobre o que eu disse então e os motivos subjacentes. Por causa disso decidi forçar esta oportunidade - o que exigiu esforço, porque não tenho tido e continuo a não ter disponibilidade para assentar aqui um conjunto de notas, posições e oposições sobre o que tem acontecido em ourém - para reportar a minha versão do que aconteceu.
    Ao longo dos trabalhos da última sessão da assembleia municipal existiram dois momentos que me levaram a falar durante o período consignado a intervenções do público. Falei primeiro sobre um assunto por ensejo, não por entender que fosse premente fazê-lo. Entendi e entendo que só por si tal matéria não justificava o uso da palavra naquela circunstância. O motivo maior da minha intervenção foi outro, mais grave, e sobre ele falei depois com demora maior. A exposição sintética do que sucedeu, acrescida de algumas considerações e observações, é a que segue, dividida em dois capítulos, cada um relativo a um dos motivos referidos.